Há um tempo para tudo debaixo do céu, e este domingo trouxe
o tempo de Dilma Vana Rousseff e seu partido, o PT, se haverem com as
consequências da crise econômica e política que semearam. Às 23h07, com o voto
de Bruno Araújo (PSDB-PE), formou-se a maioria de 342 deputados necessária para
que o processo de impeachment que tramitava na Casa siga para o Senado, onde
Dilma poderá ser julgada por crime de responsabilidade - o placar final ficou
em 367 votos contrários à petista e 137 contra o impeachment. Houve ainda 7
abstenções e duas faltas. A votação foi encerrada já perto da meia-noite.
Quarta presidente eleita desde a Constituição de 1988, a petista agora faz
dupla com Fernando Collor de Mello, que enfrentou, em 1992, o mesmo ritual de
impedimento.
Chorando, Bruno Araújo proferiu seu voto já em clima de
festa no plenário. "Que honra o destino meu reservou: da minha voz sairá o
grito de mudança dos brasileiros". Ao terminar seu voto, o tucano saiu
carregado pelos colegas de oposição. A Avenida Paulista e a Esplanada dos
Ministérios também explodiram em celebrações - ao menos, é claro, o lado do
muro reservado aos manifestantes pró-impeachment. Do outro, um misto de
tristeza, resignação e um discurso que afirmava que "a luta não
terminou". O ânimo dos manifestantes de esquerda, contudo, já parecia ter
se esgotado. Nas ruas, cada voto foi acompanhado como uma decisão por pênaltis
numa partida de futebol: a tensão era logo substituída pela alegria, ou raiva.
Dilma e o PT insistem em dizer que a democracia brasileira
sofre um golpe, e que seu impeachment representará uma ruptura institucional.
Mas a votação de hoje está imune a qualquer questionamento. O governo teve
ampla oportunidade de atacar na Justiça todos os aspectos da tramitação do
processo de impeachment na Câmara. Seus argumentos foram analisados pelo
Supremo Tribunal Federal, acolhidos em alguns casos, rejeitados na maioria.
Disso resultou um rito que já não pode ser questionado. Mais importante, o
impeachment requer a maioria de dois terços do plenário da Câmara justamente
para garantir que não paire nenhuma dúvida sobre uma decisão de tamanha
gravidade. Cabia ao governo a tarefa mais "fácil": a de obter o apoio
de 172 parlamentares. O fato de que não foi capaz de fazê-lo atesta o grau de
aversão a Dilma. E não foi pouco o que ela ofereceu para cooptar parlamentares.
Ou melhor: o que Lula ofereceu. O ex-presidente, um político infinitamente mais
hábil que sua pupila e sucessora, transformou um hotel de Brasília em bunker
anti-impeachment. Às vésperas da votação, o Diário Oficial registrava nada
menos que 26 nomeações feitas como consequência do frenético loteamento de
cargos promovido pelo governo. Mas nem isso bastou. Pesou mais o sentimento
registrado pelas pesquisas de opinião, que mostram que mais de 60% dos brasileiros
desejam que Dilma seja apeada o quanto antes de seu lugar no Planalto.
Numa analogia com o processo penal, a Câmara atua como o
Ministério Público na tramitação do impeachment: observa se existem indícios de
crime e oferece uma denúncia. Cabe ao Senado o papel de julgador. É lá que a
denúncia é aceita ou rejeitada numa primeira comissão. Se for aceita em decisão
referendada pelo plenário, Dilma tem de se afastar do cargo e o mérito da
acusação deve ser avaliado em até 180 dias. Para que perca o mandato em
definitivo, é preciso que 54 dos 81 senadores julguem que ela é culpada de
crime de responsabilidade - mais uma vez, uma maioria de dois terços. Dilma,
obviamente, repetiu reiteradas vezes que não cometeu crime algum. Mas o
relatório do deputado Jovair Arantes, defendendo o contrário, é uma peça
poderosa. Pedaladas fiscais e outros atentados à ordem orçamentária da
República - os crimes de que Dilma é acusada - não representam, nas palavras de
Arantes, "atos de menor gravidade ou mero tecnicismo contábil". Eles
são, pelo contrário, "gravíssimos e sistemáticos atentados à Constituição
Federal, em diversos princípios estruturantes do Estado de Direito, mais
precisamente a separação de Poderes, o controle parlamentar das finanças
públicas, a responsabilidade e equilíbrio fiscal, o planejamento e a
transparência das contas do governo, a boa gestão do dinheiro público e o
respeito às leis orçamentárias e à probidade administrativa."
Se a presidente sofrer impeachment por crimes orçamentários,
a mensagem será poderosa. A noção de que os governantes não recebem carta
branca para realizar seus planos de governo a qualquer custo, quando ganham uma
eleição, talvez fique inscrita com fogo na ordem pública brasileira. Mas o fato
é que o embasamento jurídico é apenas um requisito do processo de impeachment.
Esse processo, na essência, é político. E no campo da política, Dilma se auto infligiu
todos os danos. A corrosão de seu capital começou na campanha de 2014, quando
ela mentiu aos eleitores sobre a necessidade de consertos na economia. Seu
segundo mandato começou com ajustes de tarifas que ela prometera não fazer e um
aumento da inflação que ela jurou que não viria. Mês a mês a economia foi se
mostrando mais frágil - e em paralelo caíam os índices de aprovação de Dilma.
Somem-se a crise econômica e o declínio de seu prestígio à incapacidade da
presidente e de seus assessores mais próximos de fazer com habilidade o jogo da
articulação política, e estão dadas as condições objetivas para o desastre.
A presidente não soube, em particular, lidar com o PMDB, e
acabou transformando seu principal sócio na coalizão governista em um ninho de
inimigos figadais - o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o vice-presidente
Michel Temer, à frente. O fato de que muitos peemedebistas são alvos graúdos da
Operação Lava Jato - Cunha em particular - em nada desculpa os erros de Dilma,
nem elimina o fato de que, para governar, ela precisava saber manter sob
controle o PMDB, ou substituí-lo em sua base. Dilma não soube fazer nenhuma das
duas coisas. Na verdade, suas tentativas inábeis de fortalecer legendas como o
PSD em detrimento do PMDB só fizeram acirrar os ânimos. Nem mesmo o apoio do
partido de Gilberto Kassab, até outro dia ministro das Cidades, ela conseguiu
na votação do impeachment: a maioria dos parlamentares do PSD votou pelo
seguimento do processo neste domingo.
Do outro lado, estava um vice que circula pelo Congresso com
particular habilidade. E soube aproveitar a tendência anti-Dilma. Michel Temer
adiantou os vetores de seu mandato num áudio espalhado pouco antes da votação
pela continuidade do processo na comissão do impeachment, na última
segunda-feira. Proposital ou não, o vazamento pode ter detido um ou outro
"indeciso", pronto a ser seduzido pelas ofertas de cargos que o
governo fazia a granel.
A partir desta segunda-feira, serão 31 dias até que o
presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) agende a data para a resolução
do processo que pode encerrar antecipadamente o governo Dilma - e a era dos
governos petistas. Em Brasília, existe a máxima de que a Câmara é a voz do
povo, pois expressa os votos de todos os rincões. Mas é o Senado da República
quem ditará os dias futuros.