A
INJEÇÃO DE CÁLCIO
Em nossa cidade
a rivalidade política sempre foi muito grande. Na época da UDN e PSD ela
atingiu o ápice. A cidade era dividida em udenistas e pessedistas: os
partidários do coronel Zé Abílio eram do PSD e os partidários do meu tio
Gervásio Pires eram da UDN. Existiam dois comerciantes: um de remédio e outro
de secos e molhados – ambos com os seus estabelecimentos localizados na Praça
Dom Pedro II, ambos praticamente em frente um ao outro. Quase todos os dias, o
da farmácia, que era udenista de carteirinha e se chamava Luiz Crespo, ficava
na espera do dono da mercearia, que era Apolinário Tenório um pessedista
doente, para conversarem sobre os mais diversos assuntos. Esse bate papo era
religiosamente feito todos os dias, só era desfeito o trato de conversarem
todos os dias quando, no dia anterior, eles abordavam o assunto política: ai as
divergências eram grandes e terminavam brigando. Por um ou dois dias Apolinário
deixava de ir à farmácia, mas logo esquecia a briga e voltava de novo o bate
papo.
Certa feita
estava os dois amigos num bate papo descontraído quando entra o vizinho da
farmácia, amigo dos dois e também udenista fiel, Dr. José Maria Pereira de
Melo. Pediu uma injeção de cálcio. O costume de tomar a injeção era pela crença
de que a mesma deixava a pessoa mais forte. Luiz Crespo prepara a injeção e
começa aplicar bem devagarzinho (pois ela tem de ser aplicada lentamente), só
que quando a injeção está no meio, Apolinário diz algo que fere os udenistas.
Nisto, Luiz Crespo pega ar. No alto da sua irritação, ele se esquece da injeção
de cálcio e empurra com toda força o líquido em Dr. José Maria. Foi entrando a
injeção e ele caindo duro. Quando Apolinário viu o que tinha acontecido, deu
uma carreira para a sua mercearia que a perna batia na bunda; pensara que Dr.
José Maria tinha batido as botas e que ele, indiretamente, tinha sido o
responsável. Ficou do outro lado da praça, olhando o desfecho, enquanto na
farmácia o experiente farmacêutico Luiz Crespo fazia tudo para reanimar Dr.
José Maria. Vendo que não tinha êxito, colocou-o nas costas e o levou para sua
casa, que era vizinha a sua farmácia. Entrou em casa com o desmaiado e o jogou
na cama. Começou a massageá-lo até que, meia hora depois, ele retornou. Sendo
um homem forte, resistiu à injeção de cálcio. Apolinário passou três dias sem
dar às caras na farmácia. Luiz Crespo, sentindo falta do amigo, atravessa a
praça e o pega no braço. Diz: venha, que eu preciso lhe responder aquela
heresia contra a UDN, e saem os dois sorrindo e comentando o ocorrido. Dias
depois, perguntado ao filósofo Basto de Sá se ele tinha visto a discursão e o
ocorrido, ele diz, que não tinha visto a discussão, pois estava distante do
ocorrido, diz que viu quando Luiz Crespo saíra da farmácia com Dr. José Maria
nas costas e que a cena parecia à fotografia do elixir de Scott, aquele que tem
na embalagem um homem carregando um bacalhau enorme nas costas.
Assim era a
política de nossa cidade: embora as divergências fossem muitas, sempre
terminavam em paz as eleições, pois no contexto final todos eram compadres,
parentes e amigos.
Quanto a Dr.
José Maria: nunca mais quis tomar injeção de cálcio quando Apolinário estava na
farmácia.
Na
próxima semana tem a continuação.